E lá vamos nós
A célebre frase de uma personagem do desenho Pica-Pau nunca fez tanto sentido em dias como os que vivemos hoje. Parece que toda manhã falamos: “E lá vamos nós”, como um grande fardo por ter que simplesmente acordar e viver, mesmo que dentro e nossas casas e se alimentando somente de conteúdo gerado pelas mídias digitais.
Depois de quase 50 dias em casa, saindo somente para os itens essenciais, foi que se percebe a alegria das pequenas coisas. E que de pequenas não tem nada. E o fluxo começa por um grão de areia nessa praia: saudade.
Mas o que é saudade?
Saudade é a fumaça de um fogo que nos aquece. É o espelho que reflete o nosso interior, sem o ver. É o abraço não dado, e a falta do consequente aconchego. Saudade é a chamada de vídeo, a lágrima, o “eu te amo", o desejo de ter a pessoa por perto. Saudade é inexplicável, é essência, é a vida.
E em dias sombrios como o que vivemos, é a saudade que faz ser gente. Saudade de andar livre, sem máscaras, mostrando o sorriso amarelo para todos. É a saudade dos amigos, da família, de correr, pular, abraçar. Saudade de beber, comer, viver. Mas também é a saudade de quem se foi, de quem não venceu a última luta da vida. É de alguém que chorou um dos mais de 50.000 mortos por um vilão invisível. E lembramos, não são só números. Sao gente. Como a gente.
Quando levanto e penso no “E lá vamos nós”, é como se toda essa saudade retornasse ao meu interior, em um fluxo de mais 24 horas sem poder ver alguém, exceto através de uma tela. São dias que se procura o abraço mais confortável do mundo, ou mesmo alguém que entenda o que se passa numa cabeça de uma pessoa em quarentena, aflita por milhões de sentimentos dançando uma música estranha dentro de si. E parece que sentir saudade é a música desse momento.
Não sei quando laços físicos serão reatados. Não sei quando teremos uns aos outros por perto novamente. Não sei quando a saudade deixará sua participação especial para que, finalmente, um abraço possa voltar a cantar a sua música. E dentre tantos dias, tantas loucuras, é toda manhã embalada por esse sentimento que faz com que a cama fique para trás, e apareça algum esforço de tornar aquele ciclo minimamente útil.
Não é fácil. Nunca foi. Imagina, ter seus melhores amigos espalhados pelos 5 cantos do país. E quando você se preparava para revê-los, como um grande tsunami devastador, o mundo para de se ver pessoalmente. Ecoa no coração o medo, e logo vem o “bom dia” para saber se ele ainda está lá. E, vejam só, ele sempre está lá.
A saudade pode até cantar. Uma hora ela cansa, para, vai beber uma água. E esperamos que ela nunca mais volte. Não que ela não seja uma boa artista, mas depois de mais de 100 dias, ela já pode parar um pouco sua turnê.
As horas passam, os dias correm. E no final de tudo, quando voltarmos ao “novo normal”, a primeira frase que quero falar ao amanhecer, no despertar, é “E lá vamos nós”…
E lá vamos nós quebrar um ciclo. Ele terá fim.